"BATISMO DE SANGUE"

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Depois de ser visto pelo público das sofisticadas poltronas do shopping, finalmente "Batismo de Sangue" (110', BRA, 2006) chegou às tranquilas cadeiras do Cine Eldorado (Bernardino de Campos, ao lado da escola Cardeal Leme).
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Dirigido por Helvécio Ratton, o filme retrata na tela as linhas de Carlos Alberto Libâneo, popular Frei Betto, em livro de título homônimo. Estão no elenco, dentre outros, Caio Blat (Frei Tito), Daniel de Oliveira (Frei Betto), Ângelo Antônio (Frei Osvaldo) e Cássio Gabus Mendes (Sérgio Paranhos Fleury, delegado do DOPS).
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A história narrada por Frei Betto recompõe mais uma das trágicas passagens da esquerda armada durante o regime militar no Brasil (1964-1985). Trata do assassinato de Carlos Marighella, ex-deputado constituinte pelo PCB em 1946, um dos artífices da dissidência comunista ocorrida em 1966/67 e líder da ALN (Ação de Libertação Nacional).
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Como se sabe, a ALN foi um dos vários organismos surgidos no final dos anos 60, todos voltados à resistência armada contra a ditadura dos militares. No entanto, a organização de Marighela despertava maior cautela e cobiça por parte dos agentes repressivos, certamente, não sem motivos.
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A rigor, em nenhum momento da luta armada verificada no país os organismos de esquerda exibiram condições de empreender propriamente uma resistência ao regime. As ações mais significativas do ponto de vista político permaneceram restritas aos assaltos à banco e sequestros de diplomatas; pouco para quem pretendia derrubar o regime através das armas.
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Ainda assim ALN e Marighella chamavam a atenção dos órgãos de repressão. Daí que seu assassinato tenha sido comemorado aos berros (e segundo consta, com várias gramas de cocaína e litros de uisque) por seu assassino, Sérgio Paranhos Fleury, nas carceragens da ditadura.
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Talvez um dos motivos de tamanha comemoração já tenha sido resumido por Luís Mir. Após a morte de Che Cuevara (8/10/1967), diz Mir, "Fidel decide pela continuidade da luta armada continental enfrentanto uma aberta oposição de um setor do PC cubano. Quem seria o substituto de Che? Marighella. Teria sido seu braço direito no continente. A 'nomeação' correu a América Latina revolucionária e foi aprovada" (In. A Revolução Impossível - a esquerda e a luta armada no Brasil. São Paulo: Best Seller, 1994, p. 246).
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Seduzidos pela liderança de Marighella e envoltos com as avançadas - em relação às bases doutrinárias e ao dogma católico convencionais - interpretações da Teologia da Libertação, freis dominicanos lançaram-se na aventura armada, no caso, contribuindo na retaguarda e no apoio logístico, isto é, "sem pegar em armas"; muito embora justificassem o uso da violência, inclusive com passagens de São Tomás de Aquino, tornado às pressas um "revolucionário"(!).
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Resultado: freis perseguidos, presos - Frei Tito foi detido pela primeira vez no fatídico Congresso da UNE, em Ibiúna - e torturados.
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A trama de "Batismo de Sangue" se concentra no envolvimento dos freis dominicanos no fuzilamento de Marighella, em 9 de novembro de 1969, e seu desdobramento sobre membros da ordem dominicana, Frei Tito em especial. Chamados de "padres comunistas" e/ou "vermelhos" pela repressão, tais religiosos seriam vistos a partir de então com enorme desconfiança pela esquerda armada, sendo acusados de "traição".
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Pelas lentes de Freio Betto, claro, não foi nada disso: Fleury teria armado uma emboscada para Marighella utilizando os freis como isca.
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Ratton assimilou bem a idéia de Betto e carregou nas cenas de tortura; talvez a fórmula encontrada para dar vazão à versão dos dominicanos sobre o fato e, em boa medida, eximí-los de qualquer responsabilidade pela morte de Marighella.
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As imagens da torutura de Fleury e seus capangas nos freis Fernando e Augusto são realmente chocantes; fazem o clássico Pra Frente Brasil (1984) parecer um sonho de verão. Coincidentemente, Fernando e Augusto foram os dois dominicanos envolvidos na morte de Marighella.
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Em resumo, "Batismo de Sangue" merece ser visto por dois motivos. Primeiro, porque o filme está bem produzido - com pequenos deslizes; já havia "orelhão" com teclas nos anos 60? -, tem um elenco que não compromete e conta com ótima fotografia. Depois, porque o trágico "batismo" de Betto e daqueles dominicanos na política deve servir de exemplo às novas gerações, estimulando-as à valorizar mais decididamente a opção democrática feita por seus pais, tios e avós.
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Vale a pena também porque "Batismo de Sangue" está em exibição no aconchegante Cine Eldorado (21h40, sextas, sábados e domingos).