FRAGMENTO DUM DIÁRIO EXTRAVAGANTE*


Astrojildo Pereira**

"... 2 de novembro. Acordo contente hoje, não sei porque. Passo a manhã de papo para o ar, na rêde, a cantar canções alegres. Depois, toco um pouco de violino e um pouco de trombone; escrevo dous postais, engraxo as botas e faço um madrigal à minha gata.

Após o almoço, enfarpelo um terno de flanela clara, acendo um charuto, e saio. Na rua encontro o meu amigo de Souza.

- Pois que! com esta roupa escandalosa!
- Está suja?
- Mas, meu nobre amigo, hoje é dia de finados!
- Ui! por todos os deuses!

Pipocas! começou o azar. Volto à caza, metó-me na solenidade duma sobrecazaca preta e duma cartola lusidia. Saio de novo, agora com uma lágrima a pingar do olho...".

* "Este trabalho foi escrito numa longa e estreita tira de papel, formato muito usado por Astrojildo Pereira na sua letra regular e encontrado dentro de uma pasta que contem as suas primeiras fadigas. No ropadé, esta nota: ' sr. Redator, No caso estas tiras que são juntas contiverem alguma cousa que preste, eu ficar-lhe-ia agradecido si as fizesse publicar na Gazeta. Do contrário, ficar-lhe-ei da mesma forma agradecido si as rasgar sem benevolência. Não vale a pena iludir-me... Respeitosamente Maurício Barros'. Não sabemos se foi publicado. Resolvemos manter... a ortografia original, porque pode ser de interesse do leitor conhecer a língua 'brasileira' que o jovem escritor manejava". In Memória & História - Revista do Arquivo Histórico do Movimento Operário Brasileiro. n° 1 (Astrojildo Pereira). Sâo Paulo: LECH, 1981, p. 89-93.

** Assinado por Maurício Barros (16/9/1910), um dos pseudonimos de Astrojildo, o texto começa assim: "Era domingo. A' tarde, depois dum dia quentissimo, eu fôra refrescar a pele suarenta à viração da praia. Ia só: detesto as camaradagens de rua, e muito especialmente as de praia...". E continua, explicando o que viria a seguir: "Pois foi nessa tarde de estio, que eu achei, na praia, quatro folhas de papel dobradas, evidentemente arrancadas dum caderno. Continham, em forma de diário, o que vai copiado, ipsis verbis, mais adiante". Ibidem, p. 89.